sábado, 3 de dezembro de 2011

A Chave Elusiva


Um texto de Marcelo Pen* sobre "Os amigos dos amigos" de Henry James, escrito especialmente para o Filme Bê. 

“Os amigos dos amigos” (“The friends of the friends”) foi lançado no mês de maio de 1896 em duas revistas razoavelmente populares dos dois lados do Atlântico. Saiu com o título “The way it came” (mais ou menos: “Do jeito que aconteceu”) e muito fiel ao esquema sucinto esboçado por Henry James, quatro meses antes, em seu caderno de apontamentos.

James foi ainda mais fiel à brevidade: reduziu para sete as dez subdivisões a princípio previstas. O que a história perdeu em extensão ganhou em tensão e mistério. As sínteses e condensações, raras no autor, funcionam muito bem aqui; o desenlace, sobretudo, mais abrupto com seu gélido ar acusatório do que antevia o plano original, repercute em retrospecto por todo o conto e na memória do leitor.

O motivo manifesto desta ficção, como na maioria das vezes em que James flerta com o sobrenatural, é o duplo. Dois personagens, um homem e uma mulher muito parecidos um com o outro, nunca se veem, apesar das inúmeras tentativas de seus amigos de lhe promoverem o encontro. A estranha simetria de suas circunstâncias reside principalmente no fato de que cada um deles recebeu, pouco antes do anúncio do falecimento, a visita do espectro de seu genitor (o pai, no caso dela; a mãe, no dele). Se esse caso funesto fez com que ela viesse a ser designada pelos amigos de “aquela, você sabe, que viu o fantasma do pai”, a longa sucessão de desencontros passa a ser tema de fofoca e até de pilhéria na sociedade, apesar do crescente desconforto, vergonha e até mesmo terror que a situação começa a infundir em ambos. Com efeito, esses amigos dos dois potenciais amigos não podiam mostrar-se menos cruéis.

Não mais, talvez, do que a narradora, que, no decorrer da história fica noiva do homem e, por ciúmes, frustra o único encontro que esse casal impossível talvez jamais possa ter em vida. Seu ato leva o enredo a uma sequência de clímaces. Mas, conforme percebemos pelo tom e pelos indícios deixados pela narradora desde o início, o resultado só pode ser desastroso.  E quando o desastre, ou série de desastres, atinge a todos, ficamos com a sensação de não saber ao certo de que desastre, exatamente, fomos testemunhas.

Como em toda ficção jamesiana, há vários níveis de entendimento, dúvidas que não se esclarecem, vontades secretas que governam a história, protocolos e máscaras, sutis provocações,  sugestões ocultas, singularidades que devem ser descobertas – artísticas, psicológicas, sociais – para que o conjunto se componha em toda sua riqueza. A chave nunca é dada. Como na vida, cada resposta parece encobrir outros enigmas.

* Marcelo Pen é crítico literário, tradutor e professor de teoria literária na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. De Henry James, traduziu contos (Um peregrino apaixonado e outras histórias, 2005), textos críticos (em A arte do romance: antologia de prefácios, Globo, 2003) e um romance (Os embaixadores, Cosac Naify, 2010)

Sede de Real



Encenar “Os amigos dos amigos” é, de certa forma, um jeito de se colocar na contramão de uma das mais visíveis tendências estéticas da produção cultural de nosso tempo. Sedento de real, nosso tempo tem, cada vez mais, preferido o documento ficcionalizado às verdades da ficção.

Na grande mídia, os reality shows impõem-se e o jornalismo faz da matéria rude do cotidiano um espetáculo sentimentaloide desinteressado pela dimensão simbólica e pelas energias arquetípicas que constituem a vida humana. Na literatura, a biografia e a auto-ajuda calaram as vozes do poeta e do narrador. Admitimos, agora, apenas o imediato do biógrafo, do cronista e do conselheiro e rejeitamos abnegadamente o desafio da exegese que nos impõe o narrador.

No teatro, tem-se, cada vez mais, preferido o depoimento dos atores e dos humoristas em desfavor da voz do personagem. Propala-se (e reduz-se) a experiência teatral a algo que genericamente denomina-se “realidade da cena”. De repente, a fábula e seus personagens tornaram-se piegas, ingênuos e desnecessários.

Exumar esta história de James e trazer com ela seus fantasmas tem a ver com um incômodo de nossa parte em relação a esse estado de coisas. “Os amigos dos amigos” é nosso elogio às sombras e ao mistério, nosso ato de amor ao grande mentiroso que é o inventor de história, nosso voto em favor à inverossimilhança, ao ator como construtor de personagem, ao mito e à metáfora. É nossa maneira de dizer que uma fábula inventada ainda pode ser um perigo. É a expressão de nossa fé na imaginação, no fingimento e em um certo tipo de transcendência que, através da ficção, reinventa e potencializa a experiência real, exatamente porque uma historinha inventada nos afasta temporariamente da realidade.

Filme Bê
Cássio Pires, Julia Ianina, Michelle Gonçalves e Victória Camargo